Sexta-feira-3 de outubro de 2025 - Email: [email protected]

Guaporé em defesa da vida: união de forças pela sobrevivência das tartarugas-da-Amazônia

Uma missão coletiva transforma o vale num santuário de esperança e proteção.

Desova das tartarugas-da-Amazônia está atrasada (Foto: Frank Néry I Governo de Rondônia)

 

No coração do Vale do Guaporé, onde a vida se revela no balanço das águas, no silêncio das margens e no mistério da floresta, nasceu uma corrente de esperança. Voluntários, comunidades locais, instituições e empresas uniram forças para que milhares de filhotes de tartarugas-da-Amazônia pudessem romper a areia, alcançar o rio e perpetuar a história de resistência dessa espécie.

 

(Esta é a terceira reportagem sobre as tartarugas-da-Amazônia. A segunda foi publicada na quarta-feira, 2 de outubro).

 

Zeca Lula é dos fundadores da Associação Comunitária e Ecológica do Vale do Guaporé (Foto: Eliete Marques I Secom ALE/RO)

 

A voadeira, leve como um sopro e veloz como a correnteza que a embala, desliza suavemente sobre as águas serenas do Rio Guaporé. Pequena no tamanho, mas imensa no propósito, esta embarcação é guiada pelas mãos calejadas e seguras de José Soares Neto, mais conhecido como Zeca Lula – guardião do rio e um dos fundadores da Associação Comunitária e Ecológica do Vale do Guaporé (Ecovale), criada em 3 de julho de 1999.

 

Zeca, junto de outros voluntários, dedica-se à educação ambiental, ao monitoramento e à proteção dos quelônios, em Costa Marques e São Francisco do Guaporé. São as sentinelas do rio, que percorrem as praias moldadas pela dança das águas, vigiando o delicado ciclo da tartaruga-da-Amazônia e de outras espécies que ali depositam a esperança da continuidade.

 

O Vale do Guaporé é rico em biodiversidade (Foto: Luís Castilhos I Secom ALE/RO)

 

Segundo Zeca, essas tartarugas escolhem com sabedoria ancestral onde criar vida: nas praias Ilha, Alta, Buraco da Barba, Terra Rompida e Poeira, do lado brasileiro. Do lado boliviano, repousam na Tartaruguinha, na Suja e, mais recentemente, na recém-descoberta praia do Estirão.

 

“Por causa dos ataques de caçadores e do turismo que chega sem pedir licença, elas mudam de lugar, buscando onde se sintam em paz e seguras”, disse Zeca com a voz de quem aprendeu a escutar o rio.

 

Uma das praias que servem de berçário natural para as tartarugas (Foto: Eliete Marques I Secom ALE/RO)

 

O vazio das praias 

 

As praias do Guaporé eram palco de um espetáculo de esperança: centenas de tartarugas, em sua marcha silenciosa, escavavam a areia quente para depositar o futuro da espécie. Cada ninho era uma promessa de continuidade, um pacto entre a terra, a água e o tempo.

 

Mas, em 2024, o que se viu foi o contrário: um silêncio, uma ausência preocupante no olhar de quem esperava a vida florescer na areia. O ciclo natural foi interrompido, e o vazio tomou o lugar onde antes vibrava a força da sobrevivência.

 

O atraso na desova não veio por acaso. Foi fruto de um conjunto de feridas abertas no coração da natureza: queimadas ilegais que pintaram o céu de cinza, a fumaça densa que mudou a temperatura das praias, e a cheia do Rio Guaporé que, impiedosa, alagou os ninhos.

 

A tudo isso somou-se a menor incidência da luz do sol – essencial para a termorregulação das tartarugas -, além das ameaças antigas e persistentes: a caça predatória e a coleta de ovos, práticas que ainda roubam vidas antes mesmo que elas tenham início.

 

Assim, o vazio das praias em 2024 não foi apenas a ausência de animais. Foi o retrato doloroso das ações humanas e das mudanças climáticas que ameaçam a espécie.

 

Zeca Lula identificando ninhos (Foto: Eliete Marques I Secom ALE/RO)

 

Operações de salvamento

 

O ano de 2024 terminou carregado de preocupação para aqueles que cuidam do rio e dos animais. A fumaça das queimadas ilegais – alimentadas pela ganância e agravadas por uma seca implacável – subiu como um véu escuro sobre o céu da floresta. Essa nuvem densa escondeu o sol, esfriou a areia onde as tartarugas costumam deixar a vida em forma de ovos, e desorientou os instintos milenares desses seres silenciosos.

 

A natureza, confusa e ferida, hesitou. As tartarugas adiaram a desova. Quando enfim os ninhos surgiram, o destino foi cruel: as águas do rio, descompassadas pelo clima extremo, subiram antes do tempo e cobriram milhares de ninhos. A esperança, que ali se escondia sob a areia, foi levada pelas correntezas.

 

A desova das tartarugas-da-Amazônia também está atrasada neste ano (Foto: Luís Castilhos I Secom ALE/RO)

 

O impacto foi avassalador. Em 2023, a vida brotara em abundância: mais de 1,4 milhão de filhotes nasceram. Mas, em 2024, mesmo com uma previsão já mais modesta de 700 mil, a realidade foi ainda mais dura – apenas 350 mil conseguiram alcançar o rio.

 

Nessa corrida contra o tempo, o espírito de solidariedade se ergueu. Voluntários, comunidades locais, instituições e empresas uniram-se como uma só correnteza de cuidado. “Realizamos operações de salvamento para resgatar o maior número possível de filhotes. Sem essa união, a perda seria muito maior”, desabafou Zeca Lula, com a sabedoria de quem conhece cada curva do Rio Guaporé.

 

Biólogo Deyvid Mulleré voluntário da Ecovale desde 2021 (Foto: Arquivo pessoal)

 

Zeca Lula destacou que as operações de salvamento não foram apenas uma resposta a uma tragédia ambiental. Foi um ato de amor. Um lembrete de que, mesmo diante da destruição, a vida ainda encontra abrigo nas mãos de quem luta por ela.

 

O repórter Antônio de Oliveira, que acompanhou a operação no ano passado, testemunhou e contribuiu para o poder transformador da dedicação humana. Entre esses rostos estava o biólogo Deyvid Muller, de 34 anos, voluntário da Ecovale desde 2021, que recordou com pesar:

 

“Foi um cenário de muita tristeza. Ver tantos ninhos alagados e muitos filhotes mortos. Morreram muitos, sim. Mas sem a nossa ajuda, morreriam ainda mais”, enfatizou.

 

Para o estudante Pedro Sotelle, de 18 anos, voluntário da Ecovale há quatro anos, cada ação no Vale do Guaporé é uma oportunidade de aprender e devolver algo à natureza. “Essa região é um verdadeiro tesouro natural, que merece ser protegido. Ajudar na desova das tartarugas foi uma experiência gratificante. Juntos, podemos garantir um futuro melhor para essas criaturas incríveis e para o nosso Rio Guaporé”, afirmou.

 

Estudante Pedro contribuiu no salvamento de filhotes em 2024 (Foto: Arquivo pessoal)

 

Incertezas de 2025

 

O ano de 2025 chega próximo do final envolto em incertezas para as tartarugas-da-Amazônia. O relógio da natureza está descompassado – a desova atrasou, e agora o nascimento dos filhotes poderá coincidir com a cheia do rio, um encontro perigoso entre a fragilidade da vida e a força desmedida das águas.

 

“Este ano, mais uma vez, a sobrevivência vai depender da nossa ajuda. Com o meio ambiente como está, elas não vão conseguir sozinhas. Já estiveram na lista das espécies ameaçadas de extinção. Conseguiram sair, mas, se isso continuar, logo voltarão”, alertou com tristeza Zeca Lula.

 

Mesmo diante do cenário sombrio, a esperança resiste. E renasce, todos os anos, no delicado momento da eclosão – quando os pequenos seres rompem a areia e se lançam ao desconhecido.

 

A Ecovale, como guardiã desta travessia, transforma esse instante em partilha e aprendizagem. Convida estudantes, parceiros e instituições para participarem da soltura de parte dos filhotes. Um gesto simbólico, mas importante.

 

Soltura dos filhotes acontece em dezembro (Foto: Frank Néry I Governo de Rondônia)

 

O evento acontece, quase como um ritual, no segundo domingo de dezembro – e já se tornou tradição. Tanto que o município de São Francisco do Guaporé o incluiu no calendário oficial, garantindo que nenhuma outra festividade concorra com o nascimento das tartarugas.

 

“É um momento de educação ambiental. Vem gente de todo lugar, até de fora do país. Todos ficam maravilhados ao ver a esperança da vida ali, diante dos olhos, como um milagre pequeno e silencioso”, contou Zeca.

 

Neste encontro entre o rio, a areia e o olhar humano, brota não apenas a vida das tartarugas – mas também a consciência de que cuidar é resistir, e que o futuro depende do que fazemos agora.

 

O momento da soltura também tem caráter de educação ambiental (Foto: José Soares Neto I Ecovale)

 

Reconhecimento do trabalho da Ecovale 

 

A Ecovale, composta por voluntários, tem parceiros privados e governamentais. Conforme Zeca, a associação já recebeu 40 prêmios, entre nacionais e internacionais. Em 2024, recebeu o Prêmio Águias Americanas de meio ambiente, concedido pelo Instituto Nacional de Qualidade Social (INQS), que premia empresas e entidades que se destacam em suas áreas por todo o país.

 

“Nós acreditamos que preservar este lugar, tão rico em biodiversidade, não é apenas uma responsabilidade local, mas uma missão que impacta o futuro de toda a Amazônia e, consequentemente, do planeta. Cada tartaruga que ajudamos a sobreviver, cada ninho que conseguimos proteger, representa um passo a mais na luta contra a degradação ambiental. Nosso objetivo é continuar mobilizando pessoas, empresas e instituições, porque a preservação só acontece de verdade quando é coletiva. A natureza não tem voz, mas nós temos, e precisamos usá-la para defender a vida”, declarou o representante da Ecovale.

 

A Ecovale é composta por voluntários e tem parceiros privados e governamentais (Foto: Ecovale I Divulgação)

 

Ações da Assembleia Legislativa

 

A Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia (Alero) tem aprovado uma série de projetos de lei que destina recursos ao combate aos incêndios florestais, à estruturação do Corpo de Bombeiros e ao fortalecimento institucional para a prevenção e resposta a desastres ambientais.

 

Em maio deste ano, por exemplo, os deputados aprovaram mais de R$ 33 milhões para reforçar o combate às queimadas e ampliar a estrutura dos Bombeiros. Já em 2024, a Alero autorizou mais de R$ 26 milhões para ações de enfrentamento às queimadas.

 

Enquanto as tartarugas ainda não realizam a desova, as gaivotas já ocuparam as areias das praias, onde botaram seus ninhos e de onde já nasceram filhotes (Foto: Eliete Marques I Secom ALE/RO)

 

Além disso, recursos são direcionados para essas áreas por meio de emendas parlamentares, instrumento que permite destinar parte do orçamento público. Trata-se de uma oportunidade para que os deputados incluam novas programações orçamentárias, a fim de atender às demandas das comunidades que representam ou de áreas consideradas prioritárias.

 

Com essas medidas, a Assembleia busca reafirmar seu compromisso com a preservação ambiental e a proteção da biodiversidade. Ao garantir recursos e fortalecer a estrutura de combate às queimadas, a Alero consolida o papel do Poder Legislativo como aliado na construção de políticas públicas voltadas à sustentabilidade e à defesa do patrimônio natural do estado.

 

Deputados estaduais em sessão ordinária no plenário da Assembleia Legislativa de Rondônia (Foto: Thyago Lorentz | Secom ALE/RO)

 

Texto: Eliete Marques I Jornalista Secom ALE/RO

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